Olhar sobrevivente

Texto de Marcia Bernardino

“Pelas ruas da cidade, a vida e a morte vão se delineando em paralelos, caminhos de escolhas de idas e vindas” , pensou a jovem ao passar por ali no local marcado pelo sangue, onde quase tudo viu.

Comerciantes aflitos nas portas. Pernas atropelantes na rua, fugindo. O ruído seco repetindo na memória. Sete tiros e o último suspiro. Logo, o tumulto dos perplexos.

Dentro de um carro fugiu o autor da morte. “Queima de arquivo”, diziam alguns.

Sirenes estridentes anunciam a chegada de policiais, interditando a calçada do trágico fim.

Corpo estirado ao chão, pessoas em estado de choque, buzinas disparadas dos veículos nervosos querendo passar. Sol a pino. Sob a luz da vida, a tragédia urbana. Triste sentimento de impotência.

“Por que tanta violência?” vozes inquietas indignadas.

A poucos metros, o menino de rua, dormindo ali na calçada, entre pessoas de bem e que nada podia dizer. Transeunte da própria vida, testemunha da própria tragédia, vítima da própria mal trajada sobrevivência. Quem o acordaria naquele momento?

Todos os olhares ficaram perdidos no sangue que lavava a calçada suja do medo.

O traficante, morto, detinha a atenção dos vivos. Na mão, uma poderosa arma.

O menino vivo, sem nome, em sono profundo do descanso de uma noite agitada, na luta por uma droga qualquer que o fizesse sentir-se sobrevivente.

Na mão? Apenas um pedaço duro e sujo de pão.

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